Desde dia 22 de Maio que a Estratégia Nacional para o Hidrogénio (EN-H2), definida pelo Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC), se encontra em processo de consulta pública, até dia 6 de Julho[1].
Este documento é uma boa contribuição para a compreensão desta nova área tecnológica e merece ser lido com atenção. Boa parte do que lá é dito, sobre o papel que o hidrogénio poderá desempenhar nos transportes e em alguma indústria mais pesada foi escrito com cuidado e está basicamente correcto.
Ainda assim, existem várias razões para estarmos de pé atrás em relação a esta EN-H2. Isto porque, e à medida que a crise climática se agrava, sabemos que Governos e grandes empresas vão cada vez mais procurar mostrar que estão a adaptar soluções sustentáveis. De preferência mantendo tudo exactamente como está para, no caso das empresas, salvaguardar os seus investimentos e modelos de negócio. Ora, como até os cientistas bastante conservadores do IPPC nos avisaram em Outubro de 2018[2], neste momento precisamos de soluções verdadeiramente disruptoras e de ter a coragem de tomar opções muito difíceis. É preciso pois perceber se o principal objectivo desta EN-H2 é verdadeiramente contribuir para o acelerar da transição energética – ou se é uma forma das empresas de gás fóssil (dito “natural”) subtilmente manobrarem as políticas públicas, prolongando indefinidamente a sua actividade poluidora, sob o alibi de estarem a ser parte da solução.
Antes de mais, algumas palavras sobre o Hidrogénio (H2), a molécula mais leve e mais abundante de todo o Universo. Parte integrante da água (H2O), bem como de muitos hidrocarbonetos e moléculas orgânicas, é um dos elementos mais importantes para a vida no nosso planeta. E há muitos anos que o uso do H2 é referido como uma possível solução limpa e sem emissões de carbono.
O H2 pode ser facilmente produzido através da electrólise da água, num processo que consome energia, sendo reunido mais tarde com moléculas de oxigénio, num processo que liberta energia (embora um pouco menos do que a que foi gasta inicialmente). Esta energia pode depois ser utilizada tal como acontece com uma bateria eléctrica. Se houver muita energia disponível, ou se esta fôr gerada num local distante de onde será consumida, então o H2 pode ser uma boa forma de guardar energia. E sem muitos dos problemas que as actuais baterias, feitas à base de lítio e de outros materiais difíceis de obter, apresentam. No caso do transporte pesado, por exemplo, o H2 pode ser uma excelente alternativa às baterias convencionais, por exemplo, comboios, camiões, autocarros e até barcos movidos a hidrogénio, como já se verifica na Alemanha, Japão e noutros países. Portugal tem inclusive uma empresa que produz autocarros movidos a H2, a CaetanoBus. Devido ao seu elevado potencial calorífico, o H2 pode ainda ser utlizado em processos industriais envolvendo elevadas temperaturas, em que a electricidade não é uma opção tão boa. Mas o ponto principal a reter aqui é que o H2 é essencialmente uma forma de guardar energia (ou “energy carrier”, em inglês). O Hidrogénio “verde” é exactamente a mesma coisa, com a ressalva de ser produzido utilizando energia renovável.
Como acontece com outras tecnologias, tem-se assistido periodicamente a vagas de entusiasmo em relação ao H2, que depois esmorecem, quando se percebe que a tecnologia não está tão matura ou barata como se julgava. Mas nos últimos 2 anos, deu-se um novo ressurgimento da tecnologia, que desta vez parece mesmo estar a ganhar algum momentum.
1- É neste contexto que surge a EN-H2, com um investimento previsto de sete mil milhões de euros até 2030, entre fundos públicos e privados[3]. Nela podemos ler boa parte do que foi escrito nos parágrafos anteriores. Mas podemos ler outras coisas também e as dúvidas surgem-nos logo na 1ª página do documento. No sumário executivo do texto disponibilizado pelo MAAC pode ler-se que “Na Europa e em Portugal, o ano de 2019 foi de intensificação do compromisso descarbonização, mas foi também o ano de discussão pública das propostas iniciais dos PNECs[4], que estavam muito assentes na eletrificação pura, o que mereceu algumas bolsas de resistência no sector do gás e em alguma indústria. O mercado assinalou a existência de uma falha que pode ser eficientemente suprida pela produção de hidrogénio.” E chegados aqui temos que perguntar-nos: qual a natureza destas “bolsas de resistência”? Serão elas de natureza tecnológica, ideológica, económica, ambiental? Poderíamos citar aqui centenas de artigos científicos escritos em anos recentes, mostrando claramente que a melhor estratégia para a redução acelerada das emissões de carbono assenta na electrificação do sector energético. Será essa a melhor estratégia em termos económicos para as empresas de gás? Obviamente que não! E porque razão deveriam elas ser tidas em conta, se são um dos principais causadores da crise climática?! Fará sentido serem as empresas de gás fóssil, que tudo têm a perder com a transição energética, a ditar a política pública de descarbonização[5]? E será que existem atas das reuniões que o MAAC teve com estas empresas, e do que lá foi discutido?
2 – Senão vejamos: uma das principais medidas anunciadas até 2030 consiste na injeção de até 15% de H2 na rede existente de gás “natural”. Ao substituir algum do gás fóssil (cerca de 90% metano) da rede nacional por H2, é possível que as emissões de CO2 sejam em parte reduzidas, mas muito maior redução viria de substituir a curto e médio prazo boa parte desses equipamentos por alternativas eléctricas e de zero emissões. Então: está o H2 a ser utilizado como desculpa para manter, e até prolongar, o prazo de vida de uma série de infraestruturas fósseis altamente poluidoras? Um exemplo muito concreto passaria por substituir fogões a gás por eléctricos, ou esquentadores a gás por termo acumuladores ou por energia solar térmica. Mas a fatia do sector residencial no consumo de gás é aliás muito baixa, estando a maior parte deste localizado na indústria e nas centrais termoeléctrias. Ora na EN-H2 é-nos também dito que as centrais a gás estão previstas funcionar até pelo menos 2040 (pág. 19), sendo o H2 dado como alibi para a sua “maior sustentabilidade”.
Um estudo recente demonstra que para substituir as 2 centrais termoeléctricas a carvão, no Pêgo e em Sines, precisaríamos de cerca de 8 GW de solar PV[6]. (De momento, a geração de electricidade em Portugal via energia solar continua a ser cerca de 2%.) O investimento para isso, andaria também ele na casa dos 7 mil milhões de euros, a quantia que se prevê gastar em H2… Mais, com o encerramento quase eminente destas 2 centrais a carvão (e que foi uma boa decisão!), que na prática pouco tempo têm trabalhado nos últimos meses[7], existe agora um grande risco de boa parte dessa electricidade ser substituída em parte pelas centrais termoeléctricas de gás e em parte pela maior importação de electricidade de Espanha (carvão e nuclear) e Marrocos (carvão, via Espanha, que importa electricidade de Marrocos), com uma maior pegada de carbono do que a nacional. Se juntarmos a isto a intenção de duplicar o volume do gás recebido em Sines via GNL (Gás “Natural” Liquefeito)[8], então percebemos como é possível baixar as emissões nacionais de CO2 e “exportar” boa parte delas para o estrangeiro. E se juntarmos a isto a vontade de construir mais gasodutos, de que o Governo actual nunca desistiu apesar das posições espanhola, francesa e europeia lhe serem contrárias[9], percebemos como o H2 pode ser usado como desculpa para justificar aquilo que Governo e empresas de gás sempre quiseram fazer!
3- Finalmente, temos o megaprojeto industrial de produção de H2 que a EN-H2 anuncia para Sines. Sines, como bem sabemos, tem um papel fulcral na economia portuguesa e sobretudo na indústria dos combustíveis fósseis. Desde a central de carvão (no seu auge, um dos maiores emissores de CO2 da Europa), até ao terminal de GNL, até à refinaria da Galp (onde já se produz H2 há muitos anos, a partir do metano), é a maior concentração em território nacional de indústrias poluidoras. Com o encerramento iminente da central a carvão, o MAAC volta-se agora para a produção de H2, com vista à sua exportação, anunciando a instalação de cerca de 1GW de solar PV e eólica, em combinação, para alimentar exclusivamente uma central de produção de H2 “verde”. O problema aqui é que isto viola a definição do que é uma utilização racional e sustentável do H2, enquanto forma de armazenar temporariamente energia. Ou seja, o que faria sentido era ter uma geração de electricidade renovável em Portugal muito próxima dos 100% já em 2030, se não antes (e há boas condições para isso), sendo depois o excesso de electricidade (nas alturas em que a rede está a gerar mais do que é consumido) utlizado para produzir H2. Com este projeto industrial, o MAAC está, pois, a “pôr a carroça à frente dos burros”, seguindo o “conselho” das empresas de gás que, por sinal… também são quem mais vai lucrar com todo o processo, ao mesmo tempo que procuram garantir o lucro dos seus investimentos por muitas décadas mais!
Resta só acrescentar que numa altura em que o transporte marítimo internacional é um dos sectores cujas emissões de CO2 mais têm aumentado[10], é muito preocupante ver o MAAC a apostar num modelo antigo e condenado de aumentar exportações a todo o custo, ainda que com alguns retoques “verdes” para dourar a pílula.
Resumindo: H2 “verde”, à partida sim, desde que feito como deve ser: com uma genuína estratégia de descarbonização em mente. Nunca como mais uma desculpa para a indústria do gás prolongar indefinidamente o seu poder económico e as suas emissões potenciadoras do caos climático! Para esse peditório já estamos fartos de dar e o tempo há muito que se esgotou!
Luís Fazendeiro
[2] “Global Warming of 1.5ºC”, Special Report, IPCC, 2018, https://www.ipcc.ch/sr15/
[3] https://www.publico.pt/2020/05/21/economia/noticia/governo-conta-hidrogenio-mobilizar-investimentos-sete-mil-milhoes-1917575
[4] Planos Nacionais de Energia e Clima, vide “O Plano Nacional de Energia e Clima 2030”, L. Fazendeiro, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2019.
[5] “Empresas de gás “é que vão desenvolver o hidrogénio, não são as eléctricas””, Capital Verde, 14/5/2020, https://eco.sapo.pt/entrevista/empresas-de-gas-e-que-vaodesenvolver-o-hidrogenio-nao-sao-as-eletricas/
[6] “Replacing coal-fired power plants by photovoltaics in the Portuguese electricity system”, Figueiredo, Nunes et al., Journal of Cleaner Production, 129-142, 222, 2019, https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2019.02.217.
[7] https://zero.ong/14-milhoes-de-toneladas-de-co2-de-reducao-de-emissoes-na-producao-de-eletricidade-nos-ultimos-tres-meses/
[8] https://gasparatras.pt/2020/01/15/expansao-do-terminal-de-gnl-de-sines-agrava-a-crise-climatica-e-mascara-as-emissoes-portuguesas/
Gostava de criar na caixa de comentários uma discussão saudável e produtiva sobre este tema. Assim, gostava de perguntar ao autor como é que considera possível tecnologicamente “ter uma geração de electricidade renovável em Portugal muito próxima dos 100% já em 2030, se não antes”. Qualquer pessoa com conhecimento básico nesta matéria entende que isto é uma utopia e não é fazível em termos de Engenharia por múltiplas razões:
1) As Energias Renováveis são intermitentes ao longo do dia
2) As Energias Renováveis são intermitentes ao longo do ano
3) Existem variações no consumo ao longo do dia e ao longo do ano
Face a estes entraves, e como mero exercício, vamos imaginar o cenário que o autor defende em que não temos Centrais Termoeléctricas nem Centrais de Ciclo Combinado a utilizar Gás Natural em funcionamento.
Nesse cenário, qual é o backup que a rede energética nacional usaria, na opinião do autor?
Obrigado,
Cumprimentos
Nem os comentários construtivos e a querer gerar discussão sobre o tema aceitam. Continuem a proliferar a ignorância sobre o tema e a contribuir para um futuro cada vez pior a nível de transição energética.