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Corredor Energético “Verde” anunciado em outubro é um passo atrás na política climática

No dia 9 de dezembro, os governos de Espanha, França e Portugal reúnem-se em Alicante para discutir o anunciado gasoduto submarino que ligará Barcelona a Marselha – o denominado BarMar, um dos elementos do novo Corredor de Energia “Verde” anunciado em outubro, e que põe um ponto final ao projeto MidCat que ligaria Espanha e França através dos Pirenéus.  Para além desta ligação, o projeto visa complementar as ligações por gasoduto entre Portugal e Espanha, concretamente entre Celorico da Beira e Zamora (gasoduto CelZa). Estas ligações servirão alegadamente para o transporte exclusivo de hidrogénio no futuro, contudo, numa primeira fase e sob o pretexto da crise energética, servirão para transportar gás fóssil.

Numa altura em que é absolutamente fulcral a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, e em que os governos deveriam canalizar recursos para tal, as organizações não governamentais de ambiente (ONGA) ZERO (Portugal), Ecologistas en Acción (Espanha) e Deutsche Umwelthilfe (Alemanha) alertam que se trata de um projeto para expandir infraestrutura de gás fóssil sem carácter de imprescindibilidade, sem  claros benefícios, sem viabilidade técnico-económica demonstrada e sob pretensões ambientais questionáveis, o que é contraproducente e entra em conflito com as políticas de descarbonização da União Europeia, pondo mesmo em causa os objetivos climáticos.

Um projeto de expansão de energia fóssil disfarçado de verde

O gás fóssil é frequentemente retratado como um combustível de transição, no entanto esta narrativa é apenas uma forma de atrasar o fim dos combustíveis fósseis(1). As ONGA signatárias questionam o pretexto verde sob o qual o projeto do Corredor Energético está a ser promovido e defendem que uma eventual adoção de hidrogénio não deve servir de justificação para manter a dependência de gás fóssil na Europa. De facto, a viabilização do transporte de hidrogénio nas redes de transporte de gás obriga a que os gasodutos existentes sejam readaptados, algo cuja viabilidade e custos ainda estão por avaliar.

Mais ainda, continua por demonstrar que o transporte de hidrogénio através de gasodutos, como este projeto se propõe a fazer, é a forma mais eficiente e custo-eficaz de fazer esse transporte, especialmente em comparação com a produção e consumo no local de hidrogénio 100% de origem renovável (hidrogénio verde). Os estudos preliminares indicam que é a eletricidade (via cabos de alta tensão em corrente contínua) para produzir hidrogénio, e não o hidrogénio, que deve ser transportada(2). É certo que o hidrogénio terá um papel a desempenhar na prossecução dos objetivos climáticos, no entanto a sua cadeia de valor e as infraestruturas de apoio precisam de ser bem pensadas e ponderadas para garantir a sua sustentabilidade e eficiência.

Projeto incompatível com o Pacto Ecológico Europeu e o RepowerEU

O pacote RepowerEU da Comissão Europeia (CE), em resposta à invasão Russa da Ucrânia, foi preparado para impulsionar o Pacto Ecológico Europeu e apresentar ações complementares para eliminar progressivamente os combustíveis fósseis Russos antes de 2030, diversificando as fontes de energia, acelerando a transição energética e poupando energia. Embora as importações de GNL (gás natural liquefeito) sejam, em certa medida, soluções de curto prazo necessárias num contexto de emergência, é também verdade que a CE afirma que, para a redução de 30% de gás fóssil até 2030 no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, existe uma necessidade limitada de infraestruturas de gás adicionais.

De acordo com a Base de Dados da Gas Infrastructure Europe(3), há infraestruturas de gás planeadas ou em construção que ascendem a uma capacidade superior a 121 bcm (mil milhões de metros cúbicos) na Europa, o que é muito acima da procura adicional estimada pela CE de 60 bcm. Estes números põem em causa a real necessidade e os benefícios de um projeto dispendioso como o gasoduto BarMar, que corre seriamente o risco de se tornar um investimento irrecuperável.

Mais ainda, dado o objetivo de redução combinado de gás fóssil no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e do RepowerEU em 52% até 2030(4) – por si insuficiente à luz da necessidade de eliminar completamente o gás fóssil até 2035 para ajudar a manter viável o objetivo de limitar o aquecimento global em 1,5°C(5) –, é absolutamente inconcebível um novo plano para uma dispendiosa expansão de infraestruturas de gás fóssil cujo horizonte temporal para a sua conclusão será exatamente por volta de 2030(6).

Exportação de hidrogénio ignora as necessidades energéticas estratégicas dos próprios países

As parcerias no domínio do hidrogénio, tal como estão atualmente planeadas na Europa, estão esmagadoramente concentradas no abastecimento dos mercados europeus, ignorando assim as necessidades energéticas estratégicas dos próprios países e parceiros diretos. Para podermos avaliar as possibilidades de exportação, uma vez satisfeitas as necessidades do território nacional, seria de esperar que fossem estimados os volumes de hidrogénio necessários por sector, em função de diferentes cenários de evolução tecno-económica e de análises acerca da relativa eficiência energética e material, custo-eficácia e impactos do ciclo de vida da utilização de hidrogénio em comparação com outras tecnologias. Ou seja, muito antes de pensar em exportar hidrogénio, é necessário utilizá-lo de modo a substituir a utilização de combustíveis fósseis em território nacional.

Ao mesmo tempo, nem Portugal nem Espanha dispõem atualmente de capacidade elétrica renovável suficiente para exportar hidrogénio verde para o resto da Europa. Por conseguinte, a exportação incerta de hidrogénio no futuro não pode servir como justificação para construir agora um gasoduto de gás fóssil. O gasoduto proposto pelo Corredor de Energia “Verde” não é, com efeito, um gasoduto para hidrogénio verde e é incerto se alguma vez o será.

Alemanha e países vizinhos não se prefiguram como clientes do gás levado pelo BarMar

A própria Alemanha e os países vizinhos têm atualmente planeados, ou fase de construção, terminais de GNL que ascendem a uma capacidade de 70,8 bcm, bem acima da procura estimada. Estes números põem mais uma vez em questão a real necessidade de interligações adicionais para o transporte de gás na Europa, bem como a sua competitividade e viabilidade económica comparando com o transporte por via marítima, face ao anúncio de infraestruturas de regaseificação em dois portos Alemães(7).

Espanha: a nova interligação de gás não traz benefícios adicionais, apenas impactos negativos adicionais

Espanha possui já uma infraestrutura de gás sobredimensionada, que tem salvaguardado as necessidades internas, estando também na base das elevadas despesas com energia dos cidadãos. Além disso, presentemente, Marselha e Barcelona já dispõem de terminais de GNL, o que põe em causa a necessidade de uma infraestrutura adicional para transporte de gás fóssil.  Por conseguinte, o desenvolvimento de novas infraestruturas de gás não trará qualquer benefício adicional para a população espanhola e, pelo contrário, abre a porta a impactos contínuos ao prolongar-se a utilização de gás fóssil. A este respeito, os subsídios públicos às empresas de gás acrescem aos motivos de preocupação para o interesse público e para a transição energética, especificamente se forem realizados através dos fundos do plano de recuperação e resiliência, que desviarão os recursos necessários para expandir a capacidade de produção das energias renováveis e podem potencialmente endividar as gerações futuras.

Embora o percurso concreto do gasoduto submarino BarMar ainda não seja claro, é certo que irá atravessar o Golfo de Leão, uma área com o índice de biodiversidade mais elevado do Mediterrâneo, que inclui Áreas Marinhas Protegidas, corredores de cetáceos, o Santuário de Pelagos e as pradarias marinhas de Posidónia, esperando-se que venha a ter impactos ambientais muito negativos e irreversíveis sobre estes ecossistemas.

França: as ligações elétricas devem ser privilegiadas 

O governo Francês manteve durante muito tempo, e por boas razões, a oposição a infraestruturas de transporte de gás entre a Península Ibérica e França, e precisa de explicar por que mudou de posição, uma vez que as circunstâncias não se alteraram substancialmente. Será que a mudança de nome e de trajeto torna novos investimentos em gás fóssil mais aceitáveis? França deve privilegiar o reforço das ligações elétricas, ao mesmo tempo que trava novos avultados investimentos no transporte de gás fóssil que põe em perigo as suas metas climáticas.

A expansão da infraestrutura de gás fóssil é incompatível com a transição energética 

Os custos totais dos gasodutos BarMar e CelZa estão ainda por determinar, não existindo números que fundamentem tais projetos, pelo que se trata, portanto, de uma decisão sem a mínima base técnica e económica. Porém, é expectável que os custos totais ultrapassem os custos previstos de 3,1 mil milhões de euros estimados para projecto MidCat, pois existem custos ocultos envolvidos na adaptação ao hidrogénio das infraestruturas primárias de gás portuguesa e espanhola numa fase posterior. A expansão das redes de distribuição de gás não é a opção mais rentável em comparação com a utilização de eletricidade – cada vez mais renovável – para a maioria das utilizações finais de energia, que é mais eficiente. Mesmo nos casos em que isso não é viável (por exemplo, na indústria que necessita de calor a alta temperatura) e em que a utilização direta de hidrogénio, em substituição do gás fóssil, é justificável, o hidrogénio deve ser produzido próximo do ponto onde será consumido, utilizando energia renovável. Por isso, é crucial é dar prioridade aos investimentos para reforço das interconexões elétricas que podem transportar qualquer excedente de energia renovável produzida na Península Ibérica para o resto da Europa, se é que alguma vez existirá um excedente real.

A janela para limitar o aquecimento global a 1,5ºC está a fechar-se, e a ação climática precisa de ser posta em prática de uma forma ponderada e eficaz. Os gasodutos BarMar e CerZa são desnecessários e um claro revés na transição energética da UE, com sérios riscos de se tornarem investimentos irrecuperáveis e de desviar recursos necessários para satisfazer o que devia ser o verdadeiro objetivo energético da Europa. França, Portugal e Espanha devem respeitar o princípio da eficiência energética e da racionalidade económica, e dar prioridade à poupança de energia e à eletrificação, com investimentos racionais a longo-prazo.

Notas:

(1) https://www.irena.org/Digital-Report/World-Energy-Transitions-Outlook-2022

(2) https://www.e3s-conferences.org/articles/e3sconf/pdf/2019/40/e3sconf_esr2019_02003.pdf

(3) https://www.gie.eu/transparency/databases/lng-database/

(4) https://e3g.wpenginepowered.com/wp-content/uploads/E3G-Report-Are-we-on-track-Repowering-towards-EU-gas-demand-reduction.pdf

(5) https://old-caneurope.lademo.be/content/uploads/2020/01/2020-CAN-gas-PP.pdf

(6) https://www.thelocal.fr/20221022/new-gas-pipeline-linking-spain-and-france-may-take-seven-years-to-build/

(7) https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/energia/detalhe/alemanha-vai-alugar-quatro-unidades-flutuantes-de-regaseificacao-para-substituir-gas-russo

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