→ Pessoas aguardam em longas filas no supermercado HEB em Austin, Texas, em
17 de fevereiro. Fotografia: Montinique Monroe / Getty Images  


A indústria de combustíveis fósseis está a usar as mesmas táticas para lutar contra os planos climáticos das cidades em todo o país.

Quando a cidade de Austin esboçou um plano para abandonar os combustíveis fósseis, a empresa de gás local rapidamente entrou em cena na tentativa de reduzir a ambição do esforço. 

Como várias outras cidades nos Estados Unidos, a cidade do Texas, que se encontra em rápida expansão e gentrificação, está à tentar reduzir a sua pegada climática. Para isto, o seu plano inicial envolvia eliminar o uso de gás em edifícios novos até 2030 e nos existentes até 2040. Habitações e empresas teriam de funcionar com eletricidade e deixar de usar gás para aquecimento, água quente e fogões. 

A proposta, que representa uma ameaça para a indústria do gás, rapidamente chamou a atenção da Texas Gas Service. A empresa elaborou revisões linha por linha para enfraquecer o plano, pediu aos clientes que se opusessem e encaminhou as suas preocupações aos principais funcionários da cidade. 

Nas suas edições sugeridas, a empresa sugeriu que referências como “eletrificação” fossem substituidas por “descarbonização” – uma política que não descarta o gás. Substituiu “veículos elétricos” por “veículos de combustível alternativo”, que funcionariam a gás fóssil comprimido. Ofereceu-se para ajudar a cidade a plantar mais árvores para absorver a poluição climática e explorar tecnologias para retirar o dióxido de carbono do ar – ambas as propostas servem para garantir a continuição da queima de gás. 

As revisões propostas foram partilhadas com o Floodlight, o Texas Observer e o San Antonio Report, pelo Centro de Investigação Climática, que as obteve por meio de registros públicos de comunicações entre as autoridades municipais e a empresa. 

Estas alterações foram, até agora, um sucesso para a Texas Gas. O plano climático publicado mais recentemente dá à empresa muito mais tempo para vender gás aos atuais clientes e permite-lhes compensar as emissões de gases de efeito estufa, em vez de eliminá-las. A cidade, no entanto, está a examinar cuidadosamente o plano após uma reação às mudanças garantidas pelo setor. 

A pressão que está a ser aplicada em Austin não é única. Ela ilustra como uma empresa de eletricidade e gás investiu centenas de milhares de dólares para reduzir as ambições climáticas de San Antonio, financiando o processo de elaboração do plano da cidade, substituindo investigadores pelos seus consultores preferidos e escrevendo o seu próprio “Caminho Flexível”, que lhe permitirá continuar a poluir. 

Num comunicado publicado para este artigo, a Associação Americana de Gás afirmou que “se irá opor, absolutamente, a qualquer esforço para banir o gás fóssil ou para marginalizar a sua infraestrutura em qualquer lugar em que o esforço se materialize, seja nos estados ou nas cidades”. Mas argumentou que essa sua posição “não é contrária aos objetivos ambientais que todos compartilhamos”, e acrescentou que “o gás natural é a chave para alcançar um futuro de energia mais limpa que todos desejamos”. 

A dependência no gás do Texas foi posta em prova (confirmou-se) em meados de Fevereiro, quando mais de 4 milhões de residências ficaram sem energia durante dias, depois de uma tempestade de inverno terrível atingir o estado. As usinas de gás dominam a rede do Texas, fornecendo 47% da eletricidade do estado. Muitas dessas usinas e os próprios gasodutos de gás fóssil que conduzem a elas falharam devido ao frio. 

Mais de um terço dos lares do Texas também dependem do gás para aquecimento. A procura por energia fóssil e aquecimento levaram a um aumento dos preços em 16.000%, apontou uma empresa de energia. As concessionárias enfrentam agora contas pesadas dos seus fornecedores de gás – e muitas estão a repassar os custos aos clientes na forma de contas altíssimas. 

O CEO da Comstock Resources, empresa de gás pertencente ao dono bilionário dos Dallas Cowboys, Jerry Jones, descreveu a sorte inesperada da indústria do gás como um “acertar no jackpot”, numa declaração de lucros.

Uma luta nacional torna-se local

A indústria do gás está a combater as reformas climáticas em cidades nos EUA – com o apoio de políticos republicanos. 

No Texas, legisladores introduziram dois projetos de lei que proíbem governos locais de banir as conexões de gás. “Ainda não houve necessariamente uma cidade que tenha proibido o gás natural, mas temos rumores do conselho municipal de Austin, da cidade de Houston, e de cidades ainda menores”, disse Jeff Carlson, chefe de gabinete do Representante Cody Harris, que apresentou uma das leis.

12%

da poluição climática dos EUA é causada por gás queimado em edifícios

Quatro outras legislaturas estaduais aprovaram leis semelhantes no ano passado, e outras 12 viram propostas similares em 2021. O grupo de pressão do gás, a Associação Americana de Gás, afirmou não estar a participar ativamente no apoio ou na pressão que está a ser aplicada para que as leis estaduais proíbam a proibição do gás, mas os seus registos internos indicam outra realidade. 

“Estamos cada vez mais ativos nos Estados Unidos”, disse a presidente da associação, Karen Harbert, numa carta aos membros explicando como a organização gastou a anuidade em 2020. Comentou que a associação está a participar em várias “Coaligações Pró-Gás fóssil” para trazer aliados.

“Ao longo do ano, foi aprovada a legislação que preserva a escolha  energética para os clientes do Arizona, Louisiana, Oklahoma e Tennessee”, disse Harbert.

Noutro e-mail interno da associação, em Fevereiro de 2020, encontramos o diretor sênior de assuntos de estado, Daniel Lapato, a pedir a uma empresa pública de gás que apoie o projeto de lei do Tennessee que tinha sido aprovado recentemente.

Legisladores em 12 estados propõem proibir governos locais de desautorizar conexões de gás

Quatro estados já promulgaram tais leis.






Tom escuro: em vigor; Tom claro: em proposta

Segundo a Agência de Proteção Ambiental, o gás queimado em edifícios causa cerca de 12% da poluição climática dos EUA. Cidades estão a tentar reduzir as emissões de gases de efeito estufa com códigos de construção e mandatos para substituir aparelhos a gás para aparelhos elétricos.

No Texas, seria isto teria um impacto significativo. O Texas queima muito mais gás do que qualquer outro estado, representando 14,9% do valor total dos EUA.

O gás é barato e o preço acessível é uma grande preocupação em Austin, onde famílias e pessoas racializadas continuam a ser economicamente excluídas de uma cidade em rápido crescimento.

Mesmo assim, os moradores de Austin não querem necessariamente gás, comentou Chelsea Gomez, uma embaixadora da comunidade que prestou consultoria sobre o plano da cidade. “Quando falamos com as pessoas, elas não querem o gás fóssil como um intermediário para um futuro sustentável – elas querem que os painéis solares sejam acessíveis para elas”, disse Gomez. “As pessoas querem [opções] que seja melhor.”

A queima de gás em ambientes fechados expõe as pessoas a poluentes perigosos que estão relacionados a ataques cardíacos, doenças respiratórias e asma. Um estudo concluiu que as crianças em casas com fogões a gás têm 42% mais probabilidade de ter asma do que as crianças em casas com fogões elétricos.

O combustível fóssil também tem impactos óbvios no clima. No Texas, o número de dias em que estão 37,8ºC ou acima, mais do que duplicou nos últimos 40 anos e pode voltar a duplicar até 2036, de acordo com um estudo do climatologista do estado do Texas. Chuvas extremas e inundações urbanas são cada vez mais frequentes, os furacões estão a ficar cada vez mais intensos e o Golfo do México está a subir. Secas e incêndios florestais estão a tornar-se mais severos.

Eram esses os efeitos que Austin estava a tentar limitar quando o Texas Gas Service se envolveu.


Em vez de reduzir as vendas aos consumidores, a Texas Gas queria contrabalançar as suas emissões climáticas com esforços e compensações de eficiência energética. As revisões sugeridas pela empresa estão a azul. Fonte: Emails obtidos através das leis de registos públicos.

‘Estragando a festa’

Depois de uma reunião antecipada em Junho com o gerente do programa climático da cidade, o gerente de assuntos regulatórios da Texas Gas, Larry Graham, escreveu num e-mail para o gerente do programa climático de Austin, Zach Baumer, que a proposta de uma nova construção totalmente elétrica “chamou a atenção de pessoas do mais alto nível da nossa empresa”. A cidade divulgou os e-mails internos, juntamente com as versões preliminares do plano, em resposta a um pedido de disponibilização dos registos públicos.

Em Julho, os funcionários da corporação mãe, One Gas, estiveram a intervir sobre as propostas da sua sede em Tulsa, Oklahoma.

Foi um nível de envolvimento que despoletou alarmes entre os funcionários da cidade.

Posteriormente, Baumer enviou um e-mail a Graham a dizer que a sua empresa estava “a invadir uma festa” quando compareceu a reunião após reunião.

Ainda assim, as autoridades municipais ouviram o feedback da Texas Gas. O plano climático originalmente previa a eliminação completa do uso de gás natural em todos os edifícios até 2040. Poucos meses depois dos esforços de pressão da empresa de gás, a cidade mudou as metas: apenas 25% dos edifícios existentes teriam de deixar o uso de gás até 2030, apesar de todos os novos edifícios terem de excluir o uso de gás.

A Texas Gas teria permissão para compensar a sua poluição, comprando créditos para trabalhos climáticos noutras partes do país, atualizando  canos com vazamentos e usando gás “renovável” de uma estação de tratamento de águas residuais – esforços que os defensores do meio ambiente disseram não serem suficientes.


Uma vista aérea de casas, edifícios e linhas elétricas passando por um bairro de Austin em 19 de fevereiro. Fotografia: Joe Raedle / Getty Images

O comité de direção ficou indignado, segundo vários participantes entrevistados. Os membros foram selecionados da comunidade para se concentrarem na equidade e redigirem um plano ambicioso, mas a indústria já os estava a impedir.

Baumer disse que percebeu rapidamente o seu erro.

“Todos estavam chateados comigo. Tive de ligar e pedir desculpas às pessoas porque que cedemos ao que a Texas Gas queria”, disse Baumer. “Eu pensei que estava a marcar uma posição de compromisso. As pessoas que faziam parte do plano não concordavam.”

Shane Johnson, o co-presidente do comité de direção que trabalha para o Sierra Club, nomeou a influência do Texas Gas como sendo “enervante”.

Depois de defensores do meio ambiente recusarem as revisões, a cidade concordou em voltar aos objetivos originais mais agressivos.

A Texas Gas, quando solicitada a comentar, disse que foi “convidada a participar das revisões do Plano de Equidade Climática de Austin e que [tem] permanecido um parceiro dedicado desde então”. A empresa declarou que participa nas iniciativas climáticas de Austin desde 2014 e que compartilha a ambição de reduzir as emissões de carbono.

“Acreditamos que, trabalhando juntos, podemos melhorar a nossa comunidade e criar estratégias eficazes que, alongo prazo, atinjam os objetivos de sustentabilidade da cidade de maneira equitativa e acessível para todos os residentes”, disse Texas Gas.

Em Setembro, quando a empresa parecia estar a perder na luta pela proposta, enviou um e-mail aos clientes alegando que isso aumentaria “gravemente” os custos e que “ameaça tirar o direito das pessoas de escolher a sua fonte de energia”.

San Antonio

Em San Antonio, os interesses comerciais locais – desde a empresa de serviços públicos da cidade a concessionárias de automóveis – tiveram ainda mais sucesso em eliminar a linguagem que exigia uma transição completa dos combustíveis fósseis.

A CPS Energy, concessionária municipal que fornece energia e gás para San Antonio, gastou 650.000 de dólares a financiar o processo de planeamento climático e ajudou a colocar a sua empresa de consultoria preferida no comando, em vez de professores da Universidade do Texas em San Antonio.

Enquanto os comités se reuniam em 2018, os líderes da CPS Energy anunciaram que já tinham desenvolvido o seu próprio plano para as próximas décadas, denominado de “Caminho Flexível”. Este faria com que a CPS Energy obtivesse metade de sua energia de fontes eólicas e solares até 2040, ao mesmo tempo que continuaria a operar sua usina a carvão até 2060.

Um esboço do plano em 2019 recusou essa abordagem, mas a concessionária continuou  a força-lo. Em Abril de 2019, a CEO da CPS, Paula Gold-Williams, pediu uma “análise de custo aprofundada”. Numa carta ao diretor de sustentabilidade da San Antonio, Doug Melnick, ela apontou que o esboço seria muito caro para os clientes e que poderia comprometer a fiabilidade da rede. Ela conseguiu. O próximo rascunho, em Agosto de 2019, adotou o “Caminho Flexível” do CPS. Este plano ficou por referir uma falha séria: o “Caminho Flexível” não levaria San Antonio à sua meta de neutralidade em carbono até 2050.

O CPS não respondeu a um pedido de comentário até à data desta publicação.

Em resposta à pressão aplicada, o plano final da cidade diluiu as principais metas de emissão, substituindo estratégias específicas para cortar as emissões por banalidades vagas e às vezes enganosas.

Os ativistas climáticos tiveram alguns sucessos. Eles fizeram com que a cidade incluísse metas provisórias – reduzir a poluição climática em 41% até 2030 e 71% até 2040, com pontos de verificação no caminho para a neutralidade de carbono até 2050.

Greg Harman, um defensor da energia limpa do Sierra Club, que participou num dos comités do plano climático, disse que a reputação do Texas como sendo hostil à ação climática é merecida e imposta pela indústria de energia. Como o resto dos Estados Unidos, as pesquisas mostram que a maioria dos habitantes do Texas acredita que as mudanças climáticas são reais e preocupantes.

“Somos um estado complexo e interessante, simplesmente temos muitos recursos energéticos”, disse Harman. “Mas os cínicos estão certos em serem cínicos.”

Fonte: The Guardian

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