A produção e consumo a nível local de hidrogénio verde pode ser viável num processo de descarbonização da indústria pesada, com painéis solares e eólicas a produzirem hidrogénio verde que pode ser consumido no local. Assim que existe um processo de transporte do hidrogénio, o processo torna-se um empecilho à descarbonização. Porquê?

Há um enorme esforço comunicativo de enquadrar o hidrogénio “verde” como uma tecnologia energética com um papel relevante na descarbonização. O esforço não passa testes básicos – emissões, custo e, principalmente, eficiência. A estratégia europeia do hidrogénio verde (a estratégia alemã de hidrogénio), criando grandes percursos de transporte, só vai consolidar as relações de dependência das periferias em relação à Alemanha, funcionar como bóia de salvação da indústria do gás fóssil e travar a descarbonização.

 

Os conteúdos produzidos pelas grandes promotoras do hidrogénio – empresas petrolíferas, a Eurogas, que reúne as empresas europeias de gás e a ENTSOG, Rede Europeia de Sistemas Operadores de Gás – camuflam informação crucial.

 

A produção e consumo a nível local de hidrogénio verde pode ser viável num processo de descarbonização da indústria pesada, com painéis solares e eólicas a produzirem hidrogénio verde que pode ser consumido no local. Assim que existe um processo de transporte do hidrogénio, o processo torna-se um empecilho à descarbonização. Porquê?

 

O nível de perdas em transporte de hidrogénio líquido marítimo em longa distância é entre 30 e 40%, com mais 5% de perdas no processo de regaseificação nos portos. Para por hidrogénio num gasoduto para transportá-lo até outro local e queimá-lo no destino final, o nível de perdas é monumental. Cada conversão energia – hidrogénio – compressão – células de combustível – introdução em rede – consumidor final – leva a mais perdas de energia. A tecnologia para converter energia em hidrogénio e de volta a energia é, na melhor das hipóteses, 46%, mas pode ser tão baixa quanto 18%. Isto significa um nível de perdas entre 54 e 82%. O hidrogénio transportado em dutos é uma tecnologia energética com 18 a 46% de eficiência.

 

Depois, a dura realidade: ouvimos “hidrogénio verde”, mas 99% de todo o hidrogénio produzido no mundo vem de combustíveis fósseis. No ano passado, a produção global de hidrogénio foi responsável por mais de 900 milhões de toneladas de emissões de CO2, o que é mais do que as emissões de toda a aviação global. O hidrogénio, seja queimado no local, seja posto num gasoduto ou seja posto num barco, tem origem fóssil, maioritariamente de gás fóssil.

 

Em Portugal, o projeto de gasoduto Celorico da Beira – Zamora (CelZa) da REN e Enagás é a principal lança da tecnologia. Os mais claros objetivos do projeto – transportar gás natural e criar projetos de hidrogénio (cinzento, verde ou outro) – atrasam a descarbonização do país décadas, alimentam a dependência de gás fóssil e ameaçam desviar o potencial de projetos renováveis.

 

O CelZa, que já foi um simples gasoduto para gás “natural”, ganhou recentemente estatuto de estrela, ao ser renomeado “Corredor de Energia Verde” por alguma empresa de comunicação. Este projeto serviria para ligar dois gasodutos de gás fóssil entre Portugal e Espanha e garantir a continuidade do fluxo de gás fóssil entre Sines e Barcelona. O governo francês vetou um gasoduto que atravessasse os Pirinéus, e por isso criou-se um novo projeto de fazê-lo atravessar pelo mar até Marselha, onde se ligaria aos gasodutos que vão até ao centro da Europa, para colmatar a falta de gás russo sentida pela indústria alemã.

 

Qual seria o plano para o hidrogénio? Começar com o troço Celorico da Beira – Zamora, por 470 milhões de euros (parte paga pela União Europeia) e avançar para transformar toda a rede de gasodutos de gás natural, que continuaria a poder transportar gás, e passaria a transportar também hidrogénio. A transformação dos troços seguintes de gasoduto, até Monforte e e Figueira da Foz, custaria mais 800 milhões de euros. Faltaria então ligar o gasoduto a Sines, mais algumas centenas ou milhares de milhões. Só quando todos estes gasodutos estivessem reconvertidos em gasodutos de hidrogénio seria possível fazer transportar 100% de hidrogénio até Zamora, ficando a faltar anos e milhares de quilómetros da parte espanhola e francesa para chegar ao centro da Europa.

 

Até lá, o gasoduto CelZa transportaria gás natural e hidrogénio. A ideia de que este hidrogénio seria 100% verde implicaria muito mais do que a expansão do governo, de aumentar os planos para 2030 de 2,5 GW para 5,5 GW. O hidrogénio seria em grande medida hidrogénio cinzento, produzido nas centrais de gás, o que coincide com os planos do governo e das empresas de gás – REN, EDP e Galp – de perpetuar o LNG no Porto de Sines, quer para transportar e usar como gás, quer para fazer hidrogénio.

 

Expandir o hidrogénio verde do basicamente zero que existe hoje até aos 5,5 GW em 2030 significaria desviar financiamento e recursos da descarbonização e da eletrificação e colocá-lo na exportação da nossa capacidade renovável. Com o nível de perdas que se conhece, significa instalar renováveis para deitar ao lixo.

 

O projeto do governo implicaria instalar uma gigantesca capacidade de produção renovável e perder mais de metade. Um estudo da Recommon indica que para a produção de 5 GW de hidrogénio verde – menos que o plano do governo – seria necessário instalar painéis solares numa área de 43 mil hectares (mais do que a área do Porto), ou turbinas eólicas numa área de 550 mil hectares (mais que a área somadas das 10 maiores cidades de Portugal). O CelZa, como os quatro outros novos gasodutos continentais – Báltico, Mar do Norte, Norte de África e Europa de Leste – a “Espinha Dorsal do Hidrogénio”, é um projeto para enviar energia da periferia para a indústria alemã, com grave prejuízo em todos os projetos noutros países e continentes.

 

O hidrogénio verde tem um pequeno papel a desempenhar na descarbonização. Em Portugal e na Europa, os planos atuais de comércio e transporte hidrogénio são um enorme obstáculo à descarbonização.

 


Este artigo de opinião, de autoria de João Camargo (investigador em alterações climáticas e membro do Climáximo), foi publicado originalmente no Expresso a 9 de Outubro de 2023.

 

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