As recentes eleições europeias levaram a um aumento dos assentos da direita e extrema-direita no Parlamento Europeu. Isto significa, também, um aumento do negacionismo climático no Parlamento, acompanhado de um discurso que contrapõe clima e ambiente, a economia, rendimentos e qualidade de vida, assim como, de um “varrer” de políticas para assegurar uma transição energética justa, em linha com as metas ditadas pela ciência climática.
Entretanto, Ursula Von der Leyen e António Costa, foram confirmados como parte do que já foi descrito como um “novo duo dinâmico” na União Europeia. O ex-primeiro ministro português assegurou o seu novo cargo como presidente do Conselho Europeu e Von der Leyen conseguiu renovar o mandato como presidente da Comissão Europeia. Esta, no final de 2019, anunciou o European New Deal, que, já na altura, era de ambição imensamente inferior à ditada como necessária pela ciência. Durante o seu mandato, juntamente com os seus aliados negacionistas e de extrema-direita, deu prioridade aos interesses das empresas e corporações, e adiou ou abandonou por completo legislação essencial prometida.
Ursula Von der Leyen e António Costa não são desconhecidos um do outro. De entre outras ocasiões, estiveram juntos, lado-a-lado, com Pedro Sanchez, primeiro ministro Espanhol e Emanuel Macron, presidente Francês, no final de 2022, na Cimeira do Corredor Verde de Hidrogénio Barcelona-Marselha (H2MED), em Alicante. Foi nesta ocasião que os 3 país chegaram a acordo, com o apoio da presidente da Comissão Europeia, em andar para a frente com o projeto H2med. Mais tarde, em janeiro de 2023, a Alemanha juntou-se ao projeto.
O que é o H2Med?
Esta é a nova infraestrutura de gasodutos que planeia atravessar a Península Ibérica, de Celorico da Beira até Zamora (CelZa), alongando-se via mar de Barcelona até Marselha (BarMar), e que daí se encaminhará até à Alemanha. O objetivo anunciado é o do transporte de hidrogénio verde para a Europa Central. O H2med, foi, entretanto, em abril de 2024, aceite como um Projeto de Interesse Comum (PIC) pela União Europeia.
Este terá um custo estimado de 2,5 mil milhões de euros, envolve 5 empresas de transmissão, e planeia-se que esteja pronto em 2030, sendo que o período de implementação é proposto que dure de 2026 a 2029.
Este projeto surgiu numa altura de suposta “crise energética”, devido ao início da invasão da Ucrânia pela Rússia, e foi defendido, sob o pretexto do seu contributo para a soberania e segurança energética da União Europeia. Desde as primeiras discussões sobre o projeto, este foi justificado na base de prever o transporte exclusivo de hidrogénio verde no futuro, acomodando apenas, numa suposta primeira fase, o transporte de gás “natural” fóssil. Foi, por isso, vendido como um “corredor de energia verde”, e como estando alinhado com as ambições europeias para a neutralidade carbónica. Será isto verdade? Não. Vamos então ver porquê.
O que é na verdade o hidrogénio verde que António Costa considerou ser a nova fileira que permitirá a re-industrialização do País?
O hidrogénio é na verdade, um vetor energético, funcionando com uma espécie de bateria elétrica química que pode armazenar energia e transportar energia.
A energia usada para produzir hidrogénio pode ser proveniente de diferentes fontes. As várias cores do hidrogénio – verde, azul, cinzento, e outras – são determinadas pelas fontes de energia usadas para o produzir.
No final de 2021 apenas 1% da produção global de hidrogénio correspondia a hidrogénio verde, e o Hidrogénio Cinzento é ainda o mais comum em todo o mundo.
O interesse em hidrogénio azul é altamente perigoso, face ao que implica, em termos de investimentos em mais infraestrutura fóssil que bloquearão a transição energética, assim como, em tecnologias de captura e sequestro de carbono, que também elas são falsas soluções, e cujo potencial, deixa muito a desejar (já que existem dúvidas fundadas em relação à fiabilidade dos métodos de sequestro). O hidrogénio azul, é então, mais outra manobra para perpetuar a queima de combustíveis fósseis, sendo, tal como expressou o ex-presidente da associação Britânica Hydrogen and Fuel Cell, uma “distração cara”.
O Hidrogénio Verde, aquele que assume destaque na tarefa de descarbonização da economia, é produzido através da eletrólise da água, num processo que consome energia elétrica e resulta na separação das moléculas de agua em oxigénio e hidrogénio. O hidrogénio pode, mais tarde, ser reunido com moléculas de oxigénio, num processo que liberta energia, embora, um pouco menos do que a energia que foi gasta inicialmente para as separar.
O ciclo inteiro de, produção e uso, de hidrogénio acarreta perdas de 60% a 85%, da energia total inicialmente produzida (dependendo da sua aplicação e tecnologia usada). É por isso, claro que, dada a perda de energia neste processo, o recurso a esta tecnologia deve, fundamentalmente, limitar-se a: 1) situações em que há produção de energia em excesso, e esta pode ser armazenada na forma de Hidrogénio Verde, para ser utilizada mais tarde, por exemplo, no setor dos transportes ou indústria; 2) uso em setores difíceis de eletrificar, ou seja, em setores onde há grandes desafios em estabelecer uma ligação direta à rede elétrica, ou onde, a eletrificação poderá não ser a opção mais viável. Este é o caso do transporte de longo curso, transporte marítimo, e alguns processos industriais, nomeadamente, a indústria química e metalúrgica – sendo que, a atividade de muitos destes, de qualquer forma, deverá ser drasticamente reduzida e/ou limitada à produção de bens essenciais. Para os restantes setores, o processo de descarbonização passa por uma ligação direta à rede elétrica. Em ambos os casos – eletrificação direta e produção de hidrogénio verde – é primário que haja um investimento em energias renováveis e na infraestrutura elétrica, e um planeamento democrático, seguindo princípios de suficiência e soberania energética, e com base em critérios de justiça social.
Qual o plano em Portugal para o H2MED?
Entre outros projetos para produção e exportação de hidrogénio em Portugal, apresentados na Estratégia Nacional para o Hidrogénio, está o plano de construção do H2MED. A sua construção para transporte de hidrogénio a longas distâncias implicaria, em Portugal, investimentos elevadíssimos.
Primeiro, seria iniciada a construção do troço Celorico da Beira – Zamora (que se prevê rondar os 470 milhões de euros de custos, parte dos quais pagos pela União Europeia). Teria também, de se transformar toda a rede de gasodutos de gás natural, que continuaria a poder transportar gás, passando a transportar também hidrogénio. A transformação dos troços seguintes de gasoduto, até Monforte e Figueira da Foz, custaria mais 800 milhões de euros. Ficaria ainda a faltar, ligar o gasoduto a Sines, o que significaria, mais algumas centenas ou milhares de milhões. Só quando, todos estes gasodutos estivessem reconvertidos em gasodutos de hidrogénio seria possível transportar 100% de hidrogénio até Zamora, ficando a faltar milhares de quilómetros da parte espanhola, francesa e alemã para chegar ao centro da Europa. Ora também, esta reconversão tem custos e viabilidade técnica por apurar.
Até lá, o gasoduto CelZa, transportaria gás natural e hidrogénio. A pretensão de este hidrogénio ser 100% verde, implicaria muito mais do que a expansão anunciada pelo governo, aquando da revisão do PNEC 2030, para capacidade eletrolisadora (que passou de um plano de 2,5 GW em 2030 para 5,5 GW até à mesma data).
Expandir a produção de hidrogénio verde, de basicamente zero, até aos 5,5 GW em 2030, significaria, desviar financiamento e recursos da descarbonização e da eletrificação e alocá-los à produção de hidrogénio (em grande parte para exportação, com níveis de perdas elevados), “atrasando a meta de eletricidade 100% renovável e mantendo centrais de gás fóssil a funcionar por tempo indeterminado”, como nota Luís Fazendeiro (em “Qual o potencial do hidrogénio para a descarbonização?”, em Le Monde diplomatique, Nov 2023).
É o H2MED um projeto de interesse comum?
A Alemanha tem sido um dos países a mostrar mais interesse pelo H2MED e juntou-se a Espanha, França e Portugal no projeto. O H2MED foi apresentado, na altura do seu anúncio, como um investimento, não só, pela transição energética, mas também, a favor de uma redução da dependência europeia de gás russo, e contra a suposta “crise energética”. Retomo agora a pergunta inicial, enumerando alguns fatores a ter em conta quando considerando o interesse “comum” neste projeto.
1. Em primeiro lugar, o H2MED vai demorar tempo a ser construído, e não estará pronto antes de 2030. Já por ocasião do anúncio inicial sobre este projeto era conhecido este prazo. Ou seja, era também sabido que este seria um projeto de investimento público massivo que, em nada, contribuiria para aliviar a situação de “crise energética” então vivida, nem nos países que importariam Hidrogénio, e muito menos, nos países exportadores (como seria o caso de Portugal).
2. Em segundo lugar, em 2030, as economias europeias já deveriam estar descarbonizadas, como forma de evitar os piores cenários da crise climática. Neste sentido, aquando da altura de início de funcionamento, o H2MED, deverá apenas transportar hidrogénio verde e nunca gás “natural”. Contudo, não há garantias claras sobre se e quando este transportará hidrogénio e sobre qual a “cor” a ser transportada.
A realidade é que o H2MED vai ligar dois dos principais operadores europeus de transmissão de gás, conectando dois grandes portos. O agora estrategicamente re-nomeado H2MED é, mais uma tentativa, por parte da indústria fóssil e dos governos aliados de fazer re-branding de anteriores projetos falhados – como o MidCat. Esta é mais uma das estratégias por parte dos governos e das empresas de gás envolvidas – a REN, Enagás, OGE, Teréga e GRTgaz – para açambarcarem os fundos europeus destinados à transição e segurança energética, enquanto vão consolidando e prolongando um negócio tão lucrativo como destrutivo, prologando o negócio de gás fóssil.
3. O transporte de hidrogénio a longas distâncias, não só implica, gastos financeiros massivos na construção de infraestrutura, como em si, tem impactos ambientais e climáticos consideráveis e desnecessários face à possibilidade da sua produção diretamente junto aos locais onde será usado. O transporte de hidrogénio, devido às propriedades físico-químicas do mesmo, acarreta altos riscos de fugas, com impactos climáticos elevados, dado que, este é um gás com efeito de estufa indireto, aumentando o tempo de vida do metano na atmosfera.
4. Adicionalmente, como já referido, só por si, o uso de hidrogénio como “pilha” para transporte de energia é um processo que implica uma maior produção de energia do que o uso direto dessa energia, e mesmo apesar de se projetarem avanços tecnológicos neste sentido, os cientistas apontam que há limites para os aumentos de eficiência deste processo. As energias renováveis – solar, eólica, hídrica, etc. – não necessitam de gasodutos!
O investimento em hidrogénio nunca poderá fazer sentido sem o abandono completo dos combustíveis fósseis, caso contrário, servirá como desculpa para produção de hidrogénio através de combustíveis fósseis, em particular de gás, e como uma extensão desta indústria fóssil. Não é isso que está a acontecer.
Um estudo recente aponta para o desencontro entre os planos de investimento em infraestruturas para hidrogénio, e a capacidade real de produção do mesmo, com projeções demasiado ambiciosas sobre o papel do hidrogénio verde. O uso desta tecnologia da forma como está a ser projetada, mostra-se desalinhado com a necessidade de fazer uma transição energética de forma urgente, e supõe, uma expansão energética, alinhada com os interesses das empresas fósseis em aumentar os seus lucros e controlo sobre o setor energético. Pelo contrário, precisamos de alternativas públicas, democráticas, que garantam acesso universal a energias renováveis.
O H2MED náo é um projeto de interesse comum! Este desvio de fundos posiciona-se como um obstáculo à transição energética, assim comprometendo as metas climáticas, como também vai contra as intenções de segurança energética. Não há segurança energética num mundo em constantes catástrofes climáticas que ameaçam as mais básicas necessidades humanas, incluindo a própria produção e fornecimento de energia.
Assim, o movimento por Justiça Climática deve opor-se a este projeto, e deve garantir que os planos para a sua construção não avançam e não se concretizam. Cabe a todas nós resistirmos e pararmos os planos criminosos de governos e empresas, que condenam a humanidade ao colapso.
Artigo escrito por Leonor Canadas, apoiante do Climáximo.